A empresa resolveu dar um upgrade em algumas áreas de seus equipamentos pesados, trocou suas antigas perfuratrizes pererecas pelas modernas rock drill de cabine climatizada com ar-condicionado, os pesados caminhões fora-de-estrada por articulados suecos, as carregadeiras CAT nove-nove-dois e os D8-L por escavadeiras litronic com shovel.
Ocorre que quando os especialistas vieram fazer as entregas técnicas e dar as palestras para os futuros operadores, presenciei e observei que os pretensos candidatos aos novos maquinários não entendiam bulhufas daquilo que os instrutores falavam lá na frente. Eles usavam jargões muito técnicos e um palavreado que nossos aluninhos nunca tinham ouvido falar. Eles proferiam algumas frases e o nosso pessoal ficava boiando. Foi somente nessa situação que comecei a entender a problemática de que o nosso quadro laboral era, em sua maioria, formado por analfabetos funcionais — problema comum em todas as grandes e médias construtoras do Brasil.
Os técnicos não sabiam quem era o seu público-alvo. (Não leram meu artigo sobre esse tema...)
Diante disso, elaborei um relatório e o passei para a alta direção expondo sobre esse quesito, sugestionando em como equacionar o entrave: a nova fase exigiria um quadro muito mais qualificado. Todos os painéis e quadros de comando dos equipamentos eram digitais e eletrônicos, e as cabines tinham ar-condicionado. Caso o operador não soubesse ler ou seguir rigorosamente os manuais de operação, poderia gerar um superaquecimento, provocando um incêndio ou comprometendo o equipamento.
Perante a minha crítica, a medida adotada posteriormente pela chefia foi atacar os efeitos e não a causa: começamos paulatinamente a trocar os que não se enquadravam no perfil exigido para as novas funções. Naturalmente, o novo quadro não ficou completo. Houve uma escassez de mão de obra qualificada e teríamos de treinar os futuros substitutos com a obra em andamento. Fizemos um novo filtro nos processos de remanejamento: aquele que não soubesse ler e escrever corretamente, não ingressaria nessa inovação tecnológica do equipamento.
O sucesso demorou a ser alcançado, pois os candidatos que tinham melhor escolaridade, no geral solteiros e mais jovens, não se sujeitavam a enfrentar intempéries, ficar aguentando a poeira e a fuligem, suportar as adaptações biológicas das trocas de turno e encarar serviços inadiáveis em finais de semana e feriados em locais longe de tudo. Nossa atratividade era a mesma oferecida pelas demais grandes do setor, e o trabalho era destinado a quem já era do ramo ou tinha familiaridade com essas adversidades corriqueiras — para quem era trecheiro, ou filho ou parente de.
Tivemos uma rotatividade muita alta nesse período e sérios problemas na profissionalização dos novos envolvidos com as atividades. Vislumbrei então uma alternativa para solucionar esse problema: verifiquei junto à Secretaria de Educação e falei com o prefeito e ele pôs à minha disposição a estrutura de ensino, ficando por minha conta e risco a montagem das turmas e a confirmação dos inscritos para o programa de alfabetização acelerada.
Reuni centenas de funcionários num auditório existente no complexo de alojamentos, onde já fazíamos palestras de mudança de função, treinamentos de segurança e integração dos novos colaboradores. Elaborei um documento que deveria ter a assinatura de todos, e uma ficha de inscrição, pois precisava de um número mínimo de inscritos para a aprovação do projeto. Expliquei-lhes que tudo isso se devia ao novo parque de equipamentos e a empresa estaria se preparando para iniciar os programas para introdução de políticas com o intuito de obter a certificação ISO-9000.
Resumi em poucas e simples palavras como seria esse processo de Gestão da Qualidade Total, como deveríamos nos preparar para obter a ISO-9000, o porquê de a empresa precisar deter essa certificação e o quão necessário era que todos os funcionários participassem dos processos. Era razoável, para isso, que eles fossem mais bem instruídos e, no mínimo, soubessem interpretar melhor alguns dos manuais e as sinalizações de segurança e qualidade. Ao terminar minha exposição de motivos, notei que todos riam discretamente da minha cara. Quando iam devolvendo as listas e fichas de inscrição em branco, tive o choque do tremendo fracasso — ninguém assinou nada.
Todos saíram sem dizer uma única palavra. Na primeira fila de cadeiras, estava um senhor muito conhecido meu, com quem já havia trabalhado junto em outros estados, e com quem eu tinha a liberdade de fazer brincadeiras. Era o Expedito, ele foi blaster e naquele momento era líder de escavação de rocha. Convidei-o para tomar um café e ele veio todo espirituoso e meio ressabiado, sabedor do que seria a nossa conversa.
Falei que eu o admirava muito e da nossa amizade de décadas a qual não havia sido feita em qualquer boteco, e lhe disse que tinha ficado aborrecido, pois achava que pelo menos ele iria assinar a relação e a ficha de inscrição. Ele saiu da minha sala de fininho, dizendo que não tinha mais idade para banco de escola. No entanto, após andar alguns passos no corredor, ele retornou, abriu a porta e falou o seguinte:
— Olha, Dulinha, eu não devia, mas vou te responder o porquê de ninguém ter assinado a papelada. Como gosto muito de você, vou te dar uma colher de chá, algo que você não deve saber, porque se soubesse, não teria pagado esse mico. Com certeza você não serviu no Exército, tô certo?
Respondi-lhe que sim, que eu realmente fora reprovado no exame médico e não conseguira entrar para as Forças Armadas. Ele continuou:
— Você não sabe o verdadeiro significado de hierarquia, não desta hierarquia existente nas firmas, mas sim da única e verdadeira, a dos quartéis!
Fiquei pasmo com sua lição de moral, sem entender aonde ele queria chegar. Ele me explicou:
— No quartel, um tenente não chama a atenção de um sargento perto de um cabo ou soldado. Nunca se quebra a regra da patente. Quando um superior quer pagar um sapo para um subordinado, ele o chama num lugar separado e sem que ninguém os veja, porque assim ele poderá gritar o quanto for necessário, nunca e jamais perto de uma patente inferior. Isso serve para qualquer ato da vida.
Você não deve chamar a atenção de um filho perto do mais novo, da esposa perto dos filhos. Elogiar sempre à vista de todos, mas as broncas devem e têm de ser separadas ou escondidas. Não se deprecia nem o cachorro perto do gato, e vice-versa.
Porque perde a autoridade, perde a moral perante os demais. Autoridade não se impõe, se conquista com o tempo!
Você acha que eu iria dar o atestado de burro perto do meu ajudante? Nunca! Você acha que um bom mestre de obras iria assinar uma ficha afirmando que é semianalfabeto perto de seus carpinteiros? Nunca! Ninguém dá atestado de burro perto de seus subordinados ou inferiores, esqueça, mude o seu pensamento e passe a ver como funciona, na prática, o mundo da hierarquia.
“Entre iguais, o feedback direto não fere — há equilíbrio e confiança. O respeito vem da forma, não do nível.”
"Corrigir alguém do mesmo nível hierárquico pode ser mais simples, porque há menos impacto na autoridade. Ainda assim, respeito e bom senso são indispensáveis para manter o ambiente saudável."
Disse que só me falou tudo isso por eu ser jovem e porque queria repassar esse seu conhecimento adquirido no Exército e ampliado em projetos no exterior.
Não me adiantou muito essa experiência de aprendizado e a nova reformulação dos métodos didáticos. Naquele momento, a empresa não tinha mais o interesse pelo programa e ele ficou para um segundo plano. As condições muito ruins do mercado anteviam uma estagnação generalizada, sem novos projetos para se tocar.
Benchmarking além do óbvio: aprendizados onde poucos olham
Ao longo da minha trajetória, sempre busquei inspiração nos melhores cases do mercado para aprimorar métodos e estratégias — especialmente na comunicação e no engajamento de equipes.
Mas fui além: também estudei modelos de didática persuasiva utilizados em contextos como o das igrejas neopentecostais. Independente da crença, é inegável a força de mobilização, clareza de mensagem e conexão emocional que esses ambientes conseguem gerar.
Adaptei essas referências para o ambiente corporativo, construindo abordagens mais humanas, engajadoras e orientadas a resultados. O que aprendi? Que boas práticas podem (e devem) vir de onde menos se espera — desde que aplicadas com ética, critério e propósito.
Porém, mesmo assim, naquele período esfriou o entusiasmo para insistir no proposito o qual tinha sido fruto de uma inspiração que tive ao visitar uma construtora em São Paulo, líder em soluções de engenharia e construção de alta complexidade, a qual me mostrou todos os passos, procedimentos e inovações da área de educação in company, e recebeu prêmios por essa atitude exemplar.
SMJ
DULA, Paulo César: Advogado, pós graduado em direito e processo do trabalho, MBA-FGV em GE Estratégia; Gestão de Projetos e foi especialista em gestão de talentos. (OAB/DF 29.342)