No circo - “Deixai aqui toda esperança, vós que entrais”,


25/06/2025 às 15h46
Por Paulo Cesar Dula

Uma reflexão sobre o ingresso voluntário nas relações jurídicas, o princípio da boa-fé e a ética da hospitalidade

Introdução: a metáfora do picadeiro como sistema jurídico

Este relato memorialista, embora nascido de uma vivência pessoal, é um convite à reflexão jurídica profunda sobre os vínculos que estabelecemos voluntariamente e os deveres que deles decorrem. Em meio a picolés, arquibancadas e palhaços, deparei-me, ainda menino, com um ensinamento que reverbera até hoje na minha vida profissional e na minha compreensão do Direito.

A história se passa em um circo — instituição itinerante, simbólica e ancestral — e nos convida a pensar sobre algo muito presente no ordenamento jurídico brasileiro: o dever de respeito, gratidão e boa-fé nas relações humanas e jurídicas.

*

Numa das minhas rebeldias sem causa e aventuras típicas da juvenilidade — porque o dono da sorveteria, o seu Silvio, não tinha confiança em me entregar ou deixar que eu pegasse o carrinho, pois o de rodas era somente para os adultos, eu carregava apenas a caixa de isopor, vendíamos picolé, ali chamado de “dolé”, nas horas quentes, e pastel nas mais frias, e eu aproveitava a oportunidade em todos os eventos que aconteciam, principalmente em postos de gasolina, nos parques ou em circos que chegavam à cidade, e fazia amizade com o pessoal —, resolvi me aventurar num circo.

Já com a experiência mostrada, passei a vender uns guarda-chuvinhas de chocolate nas arquibancadas, achando que tinha veia cômica e poderia ser palhaço ― queria testar, para ver qual era a minha etnia. Ocorreu então que o circo saiu da minha cidade e, no meio do caminho, precisamos parar em uma cidadezinha muito pequena, onde acampamos, para abastecermos e darmos água aos animais.

Lá, o circo passou a fazer novas apresentações. Na estreia, a abertura foi com as músicas Magnetic Fields e Fourth Rendez-Vous, e o dono do circo, com aquele sotaque portenho, disse “Aprazível cidade tal”. Fiquei intrigado com as suas primeiras palavras e resolvi interrogá-lo, pois o chamávamos de mestre. Frustrado — porque achava que iríamos para uma grande metrópole, ao invés de pararmos numa cidadezinha mequetrefe, muito menor que a minha —, perguntei-lhe o que aquela acanhada e bucólica cidade tinha de aprazível (falei um palavrão), e ele, olhando para todos os lados, me chamou num canto e disse:

― Por ora, você não deve nem saber, nem ter noção, do que é ser aprazível. É aquilo que nos dá prazer, algo que nos faz sentirmo-nos felizes por ali estar ou por estar com alguém.

E eu, novamente sem a mínima educação, o questionei:

― Por isso mesmo, onde está a felicidade e o prazer?

Com toda a sua sapiência e didática, ele respondeu-me:

― Menino, ao passarmos pela BR, nossa única opção foi adentrarmos nessa cidade. A ideia foi nossa, e entramos aqui por livre e espontânea vontade. Quando você entrar na casa de alguém, limpe os pés no capacho, dobre a sua cabeça e agradeça por te deixarem entrar, por mais humilde que seja o lugar, pois há uma pura e infinita intimidade naquele lar. Você não tem o direito de criticá-lo. Quem mandou você querer entrar lá? Após ter entrado, respeite e componha-se no ato de ser gentil. Tenha o mínimo de gratidão por ter sido recebido!

Perguntou-me, logo em seguida, se conhecia a Divina Comédia, de Dante Alighierie, o Inferno de Dante. Explicou-me que na porta do inferno existia uma inscrição que dizia “Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate”, ou seja, “Deixai aqui toda esperança, vós que entrais”, e completou:

— Antes de adentrar em algo, deve pensar bem e planejar muito, pois após ser efetivada a sua entrada, não haverá mais nenhuma salvação! Ao optarmos em adentrar, e recebidos sermos, devemos manifestar gratidão e idolatria pelo lugar que para o anfitrião é sagrado. Se é sagrado para eles, é aprazível para nós, entendeu? Diante disso, você não pode trabalhar neste circo. Arrume uma carona e volte para a sua casa, não tem capacidade, nem sangue, para pertencer à família circense!”

Pronto! Ninguém sabia dessa minha vergonha de ter levado uma das maiores descomposturas da minha vida. Ele ainda disse que eu deveria começar lavando e recolhendo o esterco dos animais, para daí pleitear uma vaga de aprendiz de palhaço.

* ... meu avô paterno me contou que os seus familiares tinham fugido do Império Otomano. Essa talvez jornada nômade, pela última estada dos meus bisavós provavelmente no atual solo eslovaco. ...esses fugitivos dividiam-se em três denominações, ou grupos étnicos: os ciganos, os circenses e os mascates. O meu avô ― que não era cigano, pois tinha se casado com uma polaca da gema, ― dizia que os ciganos não permitiam esse tipo de mistura étnica, que circense igualmente não era. Por eliminação, restavam os mascates, quem sabe… (outro artigo).
Por fim, em cinco dias, confirmei que da circense realmente eu não era.

EXPLICAÇÃO DA AVENTURA:

I. A aventura circense e a lição de pertencimento

Durante minha adolescência, vendendo doces em circos e eventos, decidi testar minha "etnia" e me aventurar como palhaço. Iniciei com pequenos trabalhos, vendendo guarda-chuvinhas de chocolate, e fui aceito — até certo ponto — como parte da trupe. Mas a lição veio em uma parada inesperada, numa cidade pequena, onde critiquei (de forma desrespeitosa) a localidade e fui advertido com sabedoria por aquele que chamávamos de "mestre".

Ao ser repreendido, ouvi dele um ensinamento que carrego até hoje:

“Quando você entra na casa de alguém, limpe os pés no capacho, abaixe a cabeça e agradeça por ter sido recebido. Não critique o lar do outro — você escolheu entrar. E uma vez dentro, deve manifestar respeito. Se é sagrado para eles, deve ser aprazível para você.”

E, como se ensinasse a regra de ouro do Direito:

“Você entrou por livre e espontânea vontade. A partir daí, não há mais volta. Toda entrada carrega consigo obrigações.”

II. O ingresso voluntário e o princípio da boa-fé objetiva

A analogia do ingresso no circo guarda paralelos com o direito contratual e as relações obrigacionais. O Código Civil Brasileiro prevê, em seu artigo 422, o princípio da boa-fé objetiva, segundo o qual:

“Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

Este princípio se estende não apenas às relações formais, mas a todo e qualquer vínculo jurídico onde haja expectativa legítima de comportamento ético e cooperativo.

Ao adentrar voluntariamente um contrato, uma comunidade, uma casa ou um sistema — ainda que informal, como o circo — criam-se deveres jurídicos laterais ou anexos, também chamados pela doutrina de "deveres de consideração, lealdade, respeito e cooperação" (Cláudia Lima Marques, baseada em Karl Larenz e outros civilistas europeus).

III. O dever de hospitalidade e o abuso do direito de crítica

O mestre do circo, mesmo sem formação jurídica, verbalizou com clareza um princípio antigo e respeitado: o dever de hospitalidade e a limitação do direito de expressão pela dignidade do outro. A crítica descabida e desrespeitosa ao espaço de acolhimento configura exercício abusivo de direito, nos termos do art. 187 do Código Civil:

“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

Há ainda eco dessa lógica no Código de Ética da OAB, que exige do advogado, em seu art. 2º, § único, I, o dever de atuar “com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé”.

IV. A hospitalidade como valor jurídico e humano

O jurista francês Jacques Derrida, em seus estudos sobre o conceito de hospitalidade, lembra que receber o outro implica abrir mão do controle absoluto. E, para o hóspede, isso exige reconhecimento e gratidão, jamais desprezo ou superioridade.

Analogamente, o ingresso em comunidades, organizações ou contratos exige compreensão dos seus valores internos e respeito ao espaço sagrado do outro. O lar de alguém, por mais simples que seja, exige compostura. Assim também uma cultura, uma instituição ou uma profissão.

V. Conclusão: entre o circo e o Direito

Talvez eu não tenha a veia circense de meus antepassados, como sonhava o menino que vendia chocolates nas arquibancadas. Mas saí dali com algo que nenhuma escola havia me ensinado: a ética do pertencimento.

Seja no Direito, na gestão ou nas relações humanas, quem decide entrar — por vontade própria — deve agir com respeito, boa-fé e gratidão. Não se entra em uma casa para desdenhá-la. Não se aceita um contrato para rasgá-lo. Não se é recebido para ser ingrato.

No fim, como nos ensinou Dante, aquele que atravessa o limiar deve saber: “Deixai aqui toda esperança, vós que entrais”. Não como renúncia à salvação, mas como aceitação dos compromissos que acompanham a liberdade de entrar.

  • Referências jurídicas:
  • BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406/2002.
  • Código de Ética e Disciplina da OAB, Provimento nº 205/2021.
  • REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito.
  • MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor.
  • LARENZ, Karl. Direito Civil Alemão.
  • DERRIDA, Jacques. A Hospitalidade.
  • ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia — Inferno.


DULA, Paulo César: Advogado, pós graduado em direito e processo do trabalho, MBA-FGV em GE Estratégia; Gestão de Projetos, foi especialista em gestão de talentos. (OAB/DF 29.342)

  • No circo - “Deixai aqui toda esperança, vós que en

Paulo Cesar Dula

Advogado - Brasília, DF


Comentários